Diferentemente dos animais, plantas e outros seres criados, o homem o foi pela palavra. Sem dúvida, na ordem da criação, o homem participa e experimenta sua consubstancialidade com o Ser do qual ele parte criada. Deus, no entanto, resolveu criá-lo após decisão particular e solene, emanada do mais profundo do Seu coração. O homem é criado a partir da intimidade do Criador, do seu próprio fôlego.
O homem fora criado conforme a imagem e semelhança de Deus na Terra. O motivo de o homem ser imagem de Deus n implica explicação alguma direta da natureza da semelhança divina. O seu centro de gravidade se acha na definição do fim para o qual ela, a semelhança a Deus, foi comunicada ao homem. A dificuldade para nós está no fato de que o texto considera a simples declaração desta semelhança com Deus como suficiente e explicita.[1] E é aqui que precisamos nos debruçar e ouvir o que a tradição teológica tem a nos ensinar sobre esse tema.
O Antigo Testamento diz que o homem foi criado em forma de “elohim”. O Israel Antigo representava os “Elohims” com dois atributos imutáveis: os “Elohims” são “sábios” e “bons” (2 Sm 14:17-20; 1 Sm 29:9). Já o salmo 8, nos diz que o homem fora criado para expressar a glória de Deus. No Novo Testamento a ideia da imagem vai ser usada para Cristo pelo Apóstolo Paulo em suas epístolas (Col. 1:15; 2Cor. 4:4). Cristo é a imagem da plenitude de Deus, pois vemos a Deus na face de Jesus Cristo. E é também em outros lugares para se referir ao homem (Tg 3:9; 1Cor 11:7, 2Cor. 3:18).
Então, na criação do homem, há duas palavras hebraicas cuja compreensão é importante:
- tzelem: imagem, estátua, objeto esculpido. Essa expressão provém do artesanato, indica a escultura talhada.
- demut: semelhança, equivalência.
No contexto do Gênesis, a segunda palavra interpreta a primeira, salientando a noção de correspondência e semelhança. Tal semelhança não se refere exclusivamente à sua natureza espiritual, mas também, e principalmente, à glória de seu aspecto corporal, ao hadar (ornamento, superioridade, majestade) e ao kavod (glória) com que Deus o decorou. (Sl. 8:6).
No mundo antigo, se considerava que a imagem significava a presença do que nela está representado. Por isso um grande rei faz erigir, nas províncias, estátuas que o representem. De forma correspondente, no relato da criação, a expressão “imagem” nos traz claramente a ideia de que o homem é colocado como a “insígnia de Deus” sobre a Terra, como seu representante e como sua honra. Gênesis nos ensina que não é, portanto, um príncipe, um rei ou uma rainha que é um reflexo, um representante de Deus na Terra, mas cada homem e mulher.
Além do que, ao decidir Deus criar o homem, ao final de sua criação a partir do barro, mostra também o triunfo o sobre a matéria, coroação de toda sua construção anterior. É significativo na Bíblia que Deus quando cria, apresente-se como um escultor significando que a criatura deverá se entregar e repousar até o fim, tranquila e pacientemente nas mãos modeladoras de Deus.
A segunda expressão “semelhança” deixa aberta uma questão: não explica em que consiste essa semelhança entre Deus e sua imagem. Aporta tal expressão uma ideia de que o homem se eleva acima de todos os seres do mundo. Essa elevação se manifesta imediatamente no que segue: “e dominem os peixes do mar, as aves do céu...”. Ou seja, o homem se diferencia hierarquicamente dos animais e de todos os outros seres.
No entanto, seria unilateral ver na “semelhança” de Deus somente a comissão divina de domínio. Tal “semelhança” pode ser entendida na forma de que a pessoa reflete a Deus, é um “modo de aparecer” do próprio Deus, qual seja, o reflexo da sua glória. O ser humano é a revelação indireta de Deus sobre a Terra. Ser imagem sempre significa deixar algo aparecer, revelar, desvendar.
Na semelhança o homem é colocado numa relação geral para com Deus. Teologicamente, a semelhança afirma algo a respeito de Deus, o qual cria para si a sua imagem e inicia uma relação especial com ela, antes mesmo de afirmar algo a respeito da pessoa que assim foi criada.
Portanto, podemos dizer que “semelhança de Deus” significa[2]:
a) Relação de Deus para com a pessoa e, somente então, a partir disso, a relação da pessoa para com Deus.
b) Deus se coloca num tal relacionamento para com a pessoa que essa se torna sua imagem e e honra na Terra.
c) O ser dessa pessoa brota dessa relação de Deus para com ela.
d) O Deus que cria para si a sua imagem corresponde a si mesmo nela. Por isso a semelhança de Deus da pessoa consiste no fato de ela, por seu lado, corresponder a ele.
Gênesis nos ensina claramente que o homem está posto no mundo como representante de Deus e de seu poder soberano, implicando, com isso, uma relação especial do homem com Deus: proximidade e parentesco direto com Deus. Apesar de estabelecer essa relação, Deus conserva uma distância que se expressa no misterioso plural da palavra que ele dirige a si mesmo: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança...”. A teologia da Igreja antiga percebeu uma revelação da Trindade nessa expressão, uma raiz para a compreensão posterior de Deus como sendo o Deus uno e trino à luz do Evangelho messiânico de Cristo.
A Alma
O sopro de Deus, como parte final, completa sua obra, a transcende, dando à criatura humana alma. A noção mais importante para a compreensão da alma é a palavra hebraica nefesch. Significa o que é vivo. A palavra tem, ainda, no Antigo Testamento, não raro, o sentido primitivo de “garganta, goela” (Is. 5:14). Ainda, designa a vitalidade do homem no seu sentido mais amplo: a nefesch tem fome (Dt 12:15), está aborrecida (Nm 21:5, Ex. 23:18), odeia (2 Sm 5:8), irrita-se (Jz 18:25), ama (Gn 44:30), e traz luto (Jr 13:17); sobretudo, ela pode morrer (Nm 23:10; Jz 16:30).
Como ser vivo, o homem é um ser de relações para com o Criador, para com os outros e para consigo mesmo. Na sua singularidade se torna vivo com a complexidade de seus relacionamentos vitais, dos quais não pode abrir mão. Forma parte de sua identidade o relacionamento com ambiente (v.8), trabalho (v.15), comunidade, responsabilidade com todo ser vivo (vv. 18-24), linguagem (vv 19.23), culminando no relacionamento decisivo com Deus (cap. 3).
A criação da mulher
A criação da mulher está consideravelmente afastada da do homem, pois é a última e mais misteriosa de todas as boas obras com que Deus quis agraciar o homem. Deus previu para o homem uma “auxiliadora semelhante a ele”, mas não idêntica, seu complemento. Os animais são também apresentados como auxiliares, mas não podem ser considerados como seus parceiros. O homem está incompleto. O “Eu” não pode viver sem o “Tu”. “Não é bom que o homem esteja só”.
Deus se decidiu pela ação criadora misteriosa extraída do próprio homem. Surgiu assim um ser diferente dos animais que o homem logo reconheceu e acolheu. No sono profundo do homem, Deus criou a mulher. A mulher se torna o outro para o homem - Eu e Tu. O encontro do outro só acontece na dependência desse descanso primeiramente provocado por Deus. O texto traz algo enigmático, mostrando que todo o agir de Deus não é visto pelo homem. Deus não tolera espectadores. Quando o homem acorda, a mulher já está diante dele. O homem não pode ver Deus em ato. Não pode contemplar o produzir de seus milagres. Pode somente adorá-Lo quando as obras já estão feitas. Isso é evidente em vários relatos bíblicos. Ex. Abraão (Gn. 15:12)
Explica-se assim a forte atração natural entre homem e mulher, que só se satisfaz quando eles se tornam “uma só carne” no filho. Como a mulher foi tirada do homem, os dois devem reencontrar-se na união. A narrativa bíblica explica essa atração como um mistério profundo da criação, assim como será o mistério entre Cristo e a Igreja, que só poderá ser visto na perspectiva da Nova Aliança, de onde a relação homem-mulher será submergida no espaço da glória de Deus (1Cor. 11:7-12).
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